Eu me chamo Antonio

sábado, 18 de abril de 2015

A tragédia de Dido

No final do século XVII (1690), surgiu na Itália a Arcádia, uma academia literária com diversos escritores que rejeitavam as extravagâncias do Barroco e divulgavam os ideais neoclássicos no século XVIII. O Arcadismo foi um movimento cultural com o desejo de retornar ao período clássico da literatura, que suscitou o estilo de vida simples dos pastores da lendária região grega de Arcádia, do deus Pan, os quais idealizavam a natureza, se alegravam através da música, da dança e de poesias que enalteciam o amor e o prazer. Proviu ainda o ressurgimento de seres mitológicos. Em Portugal, no ano de 1756, por influência italiana, escritores fundaram a Arcádia Lusitana, academia literária que deu início ao movimento naquele país, cultivando a poesia de ambiente campestre, celebrando a vida pastoral e onde a poesia predominou como gênero literário, embora certas vezes, aproximada da prosa utilizando versos sem rima. Na Arcádia Lusitana ou Arcadismo Português destaca-se entre outros, escritores como: Cruz e Silva, Correia Garção e Reis Quita. Mais tarde, em 1790, surge outra importante academia árcade em Portugal, a Nova Arcádia, onde se destaca entre outros: Caldas Barbosa, Padre José Augustinho de Macedo e um dos maiores poetas portugueses daquele tempo, Bocage. O Arcadismo surgiu em um contexto social, no qual aconteceram profundas mudanças sociais e ideológicas guiadas pelo Iluminismo. Portanto, ele foi a expressão artística da burguesia, classe que protagonizou a luta política travada naquele momento e que chegou ao poder com a Revolução Francesa em 1789.
No poema “Cantata de Dido”, Correia Garção recria a chegada de Enéias à Cartago. Enéias foi um personagem da mitologia grego-romana, cuja história é contada no  poema “Eneida”, épico latino escrito por Vírgilio no século I a. C., ele foi um descendente do rei da  Dardânia, casado com Creúsa com a  qual tinha um filho chamado Lulo. Depois de salvo de um naufrágio e da derrota contra os gregos na guerra de Tróia, Enéias e seus troianos chegam a cidade africana de Cartago, onde são gentilmente recebidos por Dido que se apaixona por ele e tornam-se assim amantes. A cantata reconta a tragédia da rainha Elissa que diz a lenda, mandou matar o seu primeiro marido, pois cobiçava sua riqueza. Assim, Elissa fugiu com seus vassalos, levando consigo as riquezas do marido, até chegar a Costa do Mediterrâneo no norte da África onde resolveu fundar sua nova pátria. Lá, Elissa comprou terras e construiu Birsa, em torno da qual se formou outra cidade; Cartago que prosperou. Elissa foi a primeira rainha de Cartago, com a criação da cidade recebeu dos locais o codinome de Dido. O casal vivia apaixonado e Enéias se esqueceu que seu  destino que era ser o ancestral de todos os romanos, fundando em suas terras na Itália, um império. Um dia, Júpiter o observou e mandou o seu mensageiro Mércurio, lembrá-lo de sua missão e ordenar que partisse imediatamente.


                      Já no roxo oriente branqueando

                As prenhes velas da troiana frota,
                Entre as vagas azuis do mar dourado,
                Sobre as asas dos ventos se escondiam. (GARÇÃO, 2015).



                Que os olhos volve à corte em que os amantes

                A fama esquecem: “Vai, Mercúrio, invoca
                Os zéfiros, nas penas te desliza,
                Filho; e a Birsa, onde aguarda em ócio Enéias,
                Sem respeito às muralhas concedidas,
                Sobre as asas do vento este recado
                Leva-lhe. (VIRGILIO, 2005).



                “Que! lanças de Cartago os alicerces

                E lindos muros maridoso traças?
                Teu reino, ah! tudo esqueces! O alto nume,
                Cujo acenar abala o Olimpo e o mundo,
                Veloz do claro pólo a ti me envia:
                Que meditas? na Líbia com que intuito
                Gastas esse vagar? Se não te excita
                Glória tanta, nem lidas e te afanas
                Trás o louvor, no teu herdeiro atenta,
                No pululante esperançoso Iulo,
                De Itália ao cetro e a Roma destinado.”

                Quebra o seu repousar. Nem te detenho,

                Nem te refuto. Para Itália segue,
                Sim, busca impérios pelas bravas ondas. (VIRGILIO, 2005)



Mercúrio, deus do comércio

A rainha Dido, tenta frustradamente convencer Enéias a permanecer junto com ela.
           

                      A misérrima Dido, 

                Pelos paços reais vaga ululando, 
                C'os turvos olhos inda em vão procura 
                O fugitivo Eneias. 
                Só ermas ruas, só desertas praças 
                A recente Cartago lhe apresenta; 
                Com medonho fragor, na praia nua 
                Fremem de noite as solitárias ondas; 
                E nas douradas grimpas 
                Das cúpulas soberbas 
                Piam nocturnas, agoureiras aves. (GARÇÃO, 2015).




Pela dor e sofrimento ao ser abandonada por Enéias, a rainha  termina por cometer suicídio usando para esse terrível ato uma espada troiana.



                Com a convulsa mão súbito arranca

                A lâmina fulgente da bainha,
                E sobre o duro ferro penetrante

                Arroja o tenro, cristalino peito;
                Em borbotões de espuma murmurando
                O quente sangue da ferida salta:
                De roxas espadanas rociadas
                Tremem da sala as dóricas colunas. (GARÇÃO, 2015).



                Trépida e em fera empresa encarniçada,

                Vibrando olhos sanguíneos, e às trementes

                Faces de nódoas salpicada, o interno
                Claustro penetra, pálida a rainha
                Já da futura morte, e furibunda
                Sobe à fogueira, o tróico ferro despe,
                Não para tal crueza reservado. (VIRGILIO, 2005).


Brutal e mortalmente ferida, se desvairando em sangue entre desmaios e o pranto, os soluços, os gritos e gemidos dos seus súditos, a rainha lentamente agoniza.



                     Não acabava; e sobre o estoque as damas

                A vêem cair, de sangue as mãos tingidas
                E a lâmina espumando. O clamor altos
                Átrios atroa; às tontas corre a Fama
                De cabo a cabo; com soluços, gritos,
                Com femíneo ululado os tetos fremem;
                Todo o ar retumba do alarido e pranto:
                Qual, de hostil assaltada, se em ruínas
                Cartago, ou Tiro antiga ardesse em alas
                Furentes, ateadas nas dos homens,
                Nas cumieiras dos deuses. Aturdida, (VIRGILIO, 2005)



                Três vezes tenta erguer-se, 

                Três vezes desmaiada, sobre o leito 
                O corpo revolvendo, ao céu levanta 
                Os macerados olhos. 
                Despois, atenta na lustrosa malha 
                Do prófugo dardânio, 
                Estas últimas vozes repetia, 
                E os lastimosos, lúgubres acentos, 
                Pelas áureas abóbadas voando 
                Longo tempo depois gemer se ouviram: (GARÇÃO, 2015).






 A morte de Dido por Augustin Cayot (1667-1772)



Orco o deus do submundo e da morada dos mortos na mitologia romana, punidor daqueles que quebravam juramentos, prepara o sacrifício de Dido, para os espíritos sobrenaturais das divindades celestiais mitológicas. Na mitologia grega Orco corresponde a Hades, o deus que também emprestava o nome ao mundo inferior e dos mortos.


                      D'Orco aos tremendos numens 

                Sacrifícios prepara; 
                Mas viu esmorecida 
                Em torno dos turícremos altares, 
                Negra escuma ferver nas ricas taças, 
                E o derramado vinho 
                Em pélagos de sangue converter-se. 
                Frenética, delira, 
                Pálido o rosto lindo 
                A madeixa subtil desentrançada; 
                Já com trémulo pé entra sem tino 
                No ditoso aposento, 
                Onde do infido amante 
                Ouviu, enternecida, 
                Magoados suspiros, brandas queixas. 
                Ali as cruéis Parcas lhe mostraram 
                As ilíacas roupas que, pendentes 
                Do tálamo dourado, descobriam 
                O lustroso pavês, a teucra espada. (GARÇÃO, 2015).



                Finais vozes repete: “Ó doces prendas,

                Quando o queira um deus e o fado, est’alma
                Recebei, libertai-me de pesares.
                Vivi, perfiz o destinado curso:
                Grande irá minha sombra agora ao Orco. (VIRGILIO, 2005)


Por fim, a rainha africana banhada de sangue quente, se joga nas chamas flamejantes da fogueira de uma pira funerária, que mantinha em sua fortaleza real.


                     Os que encetei solenes sacrifícios

                A Jove Estígio concluir tenciono,

                Findar meus males e entregar à pira
                A imagem do infiel.” Termina; a serva
                Com senil zelo acelerava o passo. (VIRGILIO, 2005).

                Armei-te a pira eu mesma, e os deuses pátrios

                Invoquei, para assim, cruel, jazeres
                Na minha ausência? A mim e a ti mataste,
                E o povo e os padres e a cidade tua. (VIRGILIO, 2005).


E no desfecho da trama, a infeliz rainha Dido de Cartago entrega-se finalmente à morte.


                         Doces despojos

                Tão bem logrados 
                Dos olhos meus,
                Enquanto os fados,
                Enquanto Deus
                O consentiam,
                Da triste Dido
                A alma aceitai,
                Destes cuidados
                Me libertai.
                Dido infelice
                Assaz viveu;
                D’alta Cartago (GARÇÃO, 2015).

                          Finais vozes repete: “Ó doces prendas,

                Quando o queira um deus e o fado, est’alma
                Recebei, libertai-me de pesares.
                Vivi, perfiz o destinado curso:
                Grande irá minha sombra agora ao Orco. (VIRGÍLIO, 2005)


Assim, Plutão o deus dos mortos, das riquezas e responsável por tudo que se encontra debaixo da terra na mitologia romana, recebe através da morte por suicídio da rica rainha Dido, a sua lúgubre e nefasta homenagem.



                     “O tributo a Plutão mandada levo;

                Do corpo eu to desligo.” Disse, e o corta:
                Foi-se o calor e evaporou-se a vida. (VIRGÍLIO, 2005)


E enquanto soprava o vento e zarpavam os navios troianos, a mente de Enéias divagava, olhando para o fogo da fogueira, para a fumaça e fuligem das cinzas que subiam para o céu, na pira funerária onde cremava o corpo da rainha que foi sua amante.

Referências

FONTE DO SABER. Arcadismo em Portugal – Origem, História e Características. Disponível em: < http://www.fontedosaber.com/portugues/arcadismo-em-portugal.html>. Acesso em: 04 mar. 2015.

GARÇÃO, Pedro António Correia. Cantata de Dido. Disponível em: < http://www.citador.pt/poemas/cantata-de-dido-pedro-antonio-correia-garcao>. Acesso em: 05 de mar. 2015.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 35. ed. São Paulo: Cultrix, 2008. 

VIRGILIO, Publio Maronis. Eneida. Brasil: Ebooks. Jan 2005. Disponível em: < http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/eneida.html>. Acesso em: 05 mar. 2015.

WIKIPÉDIA. Dido. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Dido>. Acesso em: 04 mar. 2015.

______. Enéias. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Eneias>. Acesso em: 04 mar. 2015.

______. Plutão (mitologia). Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Plut%C3%A3o_(mitologia)>. Acesso em: 05 mar. 2015.

______. Orco. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Orco>. Acesso em: 05 mar. 2015.




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