No final do século XVII (1690), surgiu na Itália a
Arcádia, uma academia literária com diversos escritores que rejeitavam as
extravagâncias do Barroco e divulgavam os ideais neoclássicos no século XVIII. O
Arcadismo foi um movimento cultural com o desejo de retornar ao período
clássico da literatura, que suscitou o estilo de vida simples dos pastores da
lendária região grega de Arcádia, do deus Pan, os quais idealizavam a natureza,
se alegravam através da música, da dança e de poesias que enalteciam o amor e o
prazer. Proviu ainda o ressurgimento de seres mitológicos. Em Portugal, no ano
de 1756, por influência italiana, escritores fundaram a Arcádia Lusitana, academia
literária que deu início ao movimento naquele país, cultivando a poesia de
ambiente campestre, celebrando a vida pastoral e onde a poesia predominou como
gênero literário, embora certas vezes, aproximada da prosa utilizando versos
sem rima. Na Arcádia Lusitana ou Arcadismo Português destaca-se entre outros,
escritores como: Cruz e Silva, Correia Garção e Reis Quita. Mais tarde, em
1790, surge outra importante academia árcade em Portugal, a Nova Arcádia, onde se
destaca entre outros: Caldas Barbosa, Padre José Augustinho de Macedo e um dos
maiores poetas portugueses daquele tempo, Bocage. O Arcadismo surgiu em um
contexto social, no qual aconteceram profundas mudanças sociais e ideológicas
guiadas pelo Iluminismo. Portanto, ele foi a expressão artística da burguesia,
classe que protagonizou a luta política travada naquele momento e que chegou ao
poder com a Revolução Francesa em 1789.
No poema “Cantata
de Dido”, Correia Garção recria a
chegada de Enéias à Cartago. Enéias foi
um personagem da mitologia grego-romana, cuja
história é contada no poema “Eneida”, épico latino escrito por Vírgilio
no século I a. C., ele foi um descendente do rei da Dardânia, casado
com Creúsa com a qual tinha um filho
chamado Lulo. Depois de salvo de um naufrágio e da derrota contra os gregos na
guerra de Tróia, Enéias e seus troianos chegam a cidade africana de Cartago,
onde são gentilmente recebidos por Dido que se apaixona por ele
e tornam-se assim amantes. A cantata reconta a
tragédia da rainha Elissa que diz a lenda, mandou matar o seu primeiro marido, pois cobiçava sua riqueza. Assim,
Elissa fugiu com seus vassalos, levando consigo as riquezas do marido, até chegar a Costa do Mediterrâneo no norte da África onde resolveu fundar sua nova pátria. Lá, Elissa comprou terras e construiu Birsa, em
torno da qual se formou outra cidade; Cartago que prosperou. Elissa foi a
primeira rainha de Cartago, com a criação da cidade recebeu dos locais o codinome de Dido. O casal vivia apaixonado e Enéias se esqueceu que seu destino que era ser o ancestral de
todos os romanos, fundando em suas terras na Itália, um império. Um dia, Júpiter
o observou e mandou o seu mensageiro Mércurio, lembrá-lo de sua missão e
ordenar que partisse imediatamente.
Já
no roxo oriente branqueando
As prenhes velas da
troiana frota,
Entre as vagas azuis do
mar dourado,
Sobre as asas dos ventos
se escondiam. (GARÇÃO, 2015).
Que os olhos volve à corte em
que os amantes
A fama esquecem: “Vai,
Mercúrio, invoca
Os zéfiros, nas penas te
desliza,
Filho; e a Birsa, onde
aguarda em ócio Enéias,
Sem respeito às muralhas
concedidas,
Sobre as asas do vento
este recado
Leva-lhe. (VIRGILIO, 2005).
“Que! lanças de Cartago os
alicerces
E lindos muros maridoso
traças?
Teu reino, ah! tudo
esqueces! O alto nume,
Cujo acenar abala o Olimpo
e o mundo,
Veloz do claro pólo a ti
me envia:
Que meditas? na Líbia com
que intuito
Gastas esse vagar? Se não
te excita
Glória tanta, nem lidas e
te afanas
Trás o louvor, no teu
herdeiro atenta,
No pululante esperançoso
Iulo,
De Itália ao cetro e a
Roma destinado.”
Quebra o seu repousar. Nem te detenho,
Nem te refuto. Para Itália
segue,
Sim, busca impérios pelas
bravas ondas. (VIRGILIO, 2005)
Mercúrio, deus do comércio
A misérrima
Dido,
Pelos paços reais vaga
ululando,
C'os turvos olhos inda em
vão procura
O fugitivo Eneias.
Só ermas ruas, só desertas
praças
A recente Cartago lhe
apresenta;
Com medonho fragor, na
praia nua
Fremem de noite as
solitárias ondas;
E nas douradas grimpas
Das cúpulas soberbas
Piam nocturnas, agoureiras
aves. (GARÇÃO, 2015).
Pela dor e sofrimento ao ser abandonada por Enéias, a rainha termina por cometer suicídio usando para esse terrível ato uma espada troiana.
Com a convulsa mão súbito arranca
A lâmina fulgente da
bainha,
E sobre o duro ferro penetrante
Arroja
o tenro, cristalino peito;
Em borbotões de espuma
murmurando
O quente sangue da ferida
salta:
De roxas espadanas
rociadas
Tremem da sala as dóricas
colunas. (GARÇÃO, 2015).
Trépida e em fera empresa
encarniçada,
Vibrando olhos sanguíneos,
e às trementes
Faces de nódoas salpicada,
o interno
Claustro penetra, pálida a
rainha
Já da futura morte, e
furibunda
Sobe à fogueira, o tróico
ferro despe,
Não para tal crueza
reservado. (VIRGILIO, 2005).
Brutal e mortalmente
ferida, se desvairando em sangue entre desmaios e o pranto, os soluços, os gritos
e gemidos dos seus súditos, a rainha lentamente agoniza.
Não acabava; e
sobre o estoque as damas
A vêem cair, de sangue as
mãos tingidas
E a lâmina espumando. O
clamor altos
Átrios atroa; às tontas
corre a Fama
De cabo a cabo; com
soluços, gritos,
Com femíneo ululado os
tetos fremem;
Todo
o ar retumba do alarido e pranto:
Qual, de hostil assaltada,
se em ruínas
Cartago, ou Tiro antiga
ardesse em alas
Furentes, ateadas nas dos
homens,
Nas cumieiras dos deuses.
Aturdida, (VIRGILIO, 2005)
Três vezes tenta erguer-se,
Três vezes desmaiada,
sobre o leito
O corpo revolvendo, ao céu
levanta
Os macerados olhos.
Despois, atenta na
lustrosa malha
Do prófugo dardânio,
Estas últimas vozes
repetia,
E os lastimosos, lúgubres
acentos,
Pelas áureas abóbadas
voando
Longo tempo depois gemer
se ouviram: (GARÇÃO, 2015).
A morte de Dido por Augustin Cayot (1667-1772)
Orco o deus do submundo e da morada
dos mortos na mitologia romana, punidor daqueles que quebravam juramentos, prepara o sacrifício de Dido, para os
espíritos sobrenaturais das divindades celestiais mitológicas. Na
mitologia grega Orco corresponde a Hades, o deus que também emprestava o nome
ao mundo inferior e dos mortos.
D'Orco aos
tremendos numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu esmorecida
Em torno dos turícremos
altares,
Negra escuma ferver nas
ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue
converter-se.
Frenética, delira,
Pálido o rosto lindo
A madeixa subtil
desentrançada;
Já com trémulo pé entra
sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu, enternecida,
Magoados suspiros, brandas
queixas.
Ali as cruéis Parcas lhe
mostraram
As ilíacas roupas que,
pendentes
Do tálamo dourado,
descobriam
O lustroso pavês, a teucra
espada. (GARÇÃO, 2015).
Finais vozes repete: “Ó doces
prendas,
Quando o queira um deus e
o fado, est’alma
Recebei, libertai-me de
pesares.
Vivi, perfiz o destinado
curso:
Grande irá minha sombra
agora ao Orco. (VIRGILIO, 2005)
Por fim, a rainha
africana banhada de sangue quente, se joga nas chamas flamejantes da fogueira
de uma pira funerária, que mantinha em sua fortaleza real.
Os que encetei
solenes sacrifícios
A Jove Estígio concluir
tenciono,
Findar meus males e
entregar à pira
A imagem do infiel.”
Termina; a serva
Com senil zelo acelerava o
passo. (VIRGILIO, 2005).
Armei-te a pira eu mesma, e os
deuses pátrios
Invoquei, para assim,
cruel, jazeres
Na minha ausência? A mim e
a ti mataste,
E o povo e os padres e a
cidade tua. (VIRGILIO, 2005).
E
no desfecho da trama, a infeliz rainha Dido de Cartago entrega-se finalmente à
morte.
Doces
despojos
Tão bem logrados
Dos olhos meus,
Enquanto os fados,
Enquanto Deus
O consentiam,
Da triste Dido
A alma aceitai,
Destes cuidados
Me libertai.
Dido infelice
Assaz viveu;
D’alta Cartago (GARÇÃO,
2015).
Finais vozes repete: “Ó doces
prendas,
Quando o queira um deus e
o fado, est’alma
Recebei, libertai-me de
pesares.
Vivi, perfiz o destinado
curso:
Grande irá minha sombra
agora ao Orco. (VIRGÍLIO, 2005)
Assim, Plutão o deus dos mortos, das riquezas e
responsável por tudo que se encontra debaixo da terra na mitologia romana, recebe através da morte por suicídio da rica rainha Dido,
a sua lúgubre e nefasta homenagem.
“O tributo a Plutão mandada
levo;
Do corpo eu to desligo.” Disse,
e o corta:
Foi-se o calor e
evaporou-se a vida. (VIRGÍLIO, 2005)
E enquanto soprava o vento e zarpavam os navios troianos, a mente de Enéias divagava,
olhando para o fogo da fogueira, para a fumaça e fuligem das cinzas que subiam para o céu, na
pira funerária onde cremava o corpo da rainha que foi sua amante.
Referências
FONTE DO SABER. Arcadismo em Portugal – Origem, História e
Características. Disponível em: < http://www.fontedosaber.com/portugues/arcadismo-em-portugal.html>.
Acesso em: 04 mar. 2015.
GARÇÃO, Pedro António Correia. Cantata de Dido. Disponível em: <
http://www.citador.pt/poemas/cantata-de-dido-pedro-antonio-correia-garcao>. Acesso em:
05 de mar. 2015.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 35. ed. São Paulo: Cultrix, 2008.
VIRGILIO, Publio Maronis. Eneida. Brasil: Ebooks. Jan 2005. Disponível
em: < http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/eneida.html>. Acesso em:
05 mar. 2015.
______. Plutão (mitologia). Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Plut%C3%A3o_(mitologia)>. Acesso em:
05 mar. 2015.
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